sexta-feira, 21 de maio de 2010

A feminilização no ambiente da pré-escola



Mochila completa, tênis amarrado, uniforme colorido, lancheira na mão. O menino animado, sorridente, brinca com os objetos como se fossem caminhões encantados que carregam “seu mundo”: desde areia – agora proibida para não sujar sua roupa – aos heróis invisíveis que mudam de poderes tanto quanto mudam os objetos à frente. O homem-aranha, o super-homem, o super-sei-lá-o-quê são invocados e despachados conforme a necessidade, conforme a imaginação. O trator, pequeno demais para carregar qualquer coisa maior que uma moeda, é o mais poderoso e mágico ser fantástico nesse universo das coisas que aparecem e desaparecem, guerreiam e caminham juntas. A "Ferrari", materialização do sonho do pai, corre mais rápido que o X-Man. Mas é hora de sair do colorido do seu mundo de encantos para entrar no carro e partir para o seu primeiro dia de aula. Alguns brinquedos, heroicamente, conseguem permanecer ao seu lado enquanto o motor é acionado.
Do outro lado, sorrisos maternos (às vezes paternos) tentam em vão esconder a dor de perceber que o filho será cuidado por outras mãos, talvez não tão carinhosas, talvez não tão compreensivas. A lembrança das notícias dos telejornais da noite cuidam de incrementar o sofrimento.

Fica comigo...
Em meio a todos esses sentimentos conflitantes e a correria dos compromissos profissionais suspensos por uma longa e angustiante hora, a dupla sai de casa. Logo chegam à escola e as dúvidas insistem em ressurgir: elas, as professoras, se aproximam. Orientam a mãe quanto ao número da sala. Sorriem para o menino, perguntam seu nome, fazem-lhe carinhos. Tornam o ambiente acolhedor. Os medos da mãe se abrandam por seu filho, mas não desaparecem, pois observa outras crianças que choram, que esperneiam. Algumas correm para o parquinho, parece que já conhecem os melhores lugares, são "antigos" na casa.
O menino, com olhar triste, diz: "mãe, fica comigo". Ela, por um instante, recebe dos céus a recompensa por anos de atenção, carinho, brigas, choros, sorrisos e sonhos. Não há nada no mundo mais significativo que esse olhar inocente cheio de dengos e de pequenos medos. O tempo parece parar. Ele a ama. A mãe, com um sorriso, diz que depois voltará para buscá-lo e que ele precisa ficar ali, pois as professoras são muito legais e há muitas crianças para brincar. Dos dois lados, lágrimas. As dela, contidas por enquanto.

Os super-heróis e a Ferrari precisam ficar em casa?
Depois de alguns dias e choros, o menino já está acostumado com o novo ambiente. Corre para o parquinho. Esquece de dizer "tchau" à mãe. Tudo parece ter entrado em seus eixos como a vida deve ser. No entanto, algumas coisas ocultas jamais serão notadas. Não há na parede da sala nenhum trator. Algumas identificações com suas fantasias, brincadeiras e sonhos ficaram de lado. Os super-heróis ficaram em casa. Os incríveis poderes de aparecer e desaparecer, de voar, carregar e de erguer estão no quarto. Talvez estejam na sala de estar enquanto a mãe não tropeçar neles e os levar para a caixa dos brinquedos.
A escola não parece ser lugar para essas coisas "tão violentas". Nas paredes das salas e dos corredores, com pequenas imperfeições na perspectiva dos desenhos, está o incrível mundo maravilhoso do açúcar cor-de-rosa. Tudo parece adocicado. Nuvens branquinhas sorrindo. Fadas voando com suas asinhas transparentes. Ursinhos de pelúcia e seus intermináveis sorrisinhos fofinhos. Uma infinidade de outros diminutivos. A doçura do acolhimento. A Ferrari, bem, o Rubinho que me perdoe, mas a Ferrari aqui na escola, nem em segundo lugar. Essa escola é das mulheres. A professora, a faxineira, a cantineira, a inspetora, a professora auxiliar, a de Artes, a de Música, a de Inglês, aquela outra mulher que cuida de não sei bem o quê. Todas mulheres. Quando um homem surge, é porque vem buscar alguma coisa, carregar alguma caixa. Trazer uma TV. Os olhares de todos os cantos o constrangem. Precisa sair logo, é quase um invasor.

O despertar dos símbolos e a reflexão
Esse relato não é uma crítica, não é símbolo de nenhuma bandeira, de nenhum movimento. Não é o retrato de todas as escolas. Não serve para algumas pré-escolas das nossas cidades. É tão somente um convite à reflexão. Um despertar para que se acolham pequenos símbolos, pequenos detalhes que, com muito bom senso, possam representar ou servir de objetos de identificação da masculinidade dos pequenos "rubinhos" e dos pequenos "super-eu-consigo" e dos "X-sou-bom".
A escola pode e deve acolher a masculinidade e a feminilidade presentes em todas as crianças, considerar, incentivar e despertar as diferenças. Pode e deve ressaltar o quanto são complementares, jamais excludentes. Deve criar um ambiente para permitir que, em cada criança, possa haver um equilíbrio maior entre as características humanas presentes neles e nelas, do acolher e do brigar, do empurrar e do abraçar, do lutar e do unir-se. Pois não são características pertencentes ao homem ou a mulher, mas a todo ser humano, homem e mulher, que incansavelmente precisam ser e estar no mundo e, de preferência, harmoniosamente juntos. São representações da busca pelo novo, da ousadia, do saber impor-se e do saber dizer não quando se quer dizer não, saber dizer sim quando realmente for a melhor resposta. Tais posturas frente ao mundo são frutos não do masculino ou do feminino, mas do equilíbrio entre eles. E são fundamentalmente necessários para futuros homens e mulheres conscientes de seus papéis na sociedade.
— Pai, na minha sala tem um tratorzão gigantão maior que esse daqui ó....
— Uau! que legal né, meu filho?
— É. Minha escola é bem legal.
E a convivência harmoniosa do “mundo feminino” com o “mundo masculino”, possivelmente um e outro estereotipados num primeiro momento, servirá de solo fértil para o crescimento da convivência, da tolerância, do respeito e, principalmente, do aceitar-se e completar-se mutuamente.

O exercício das trocas entre meninos e meninas
Mais tarde, homens e mulheres saberão respeitar os espaços e idiossincrasias de cada um, pois terão aprendido, desde muito cedo, que podem conviver em harmonia. Cada um saberá, com melhor propriedade, considerar internamente suas forças de ataque e de defesa, de acolhimento e de afastamento, de aceitar e rejeitar, e, principalmente, de ser íntegro, completo. Pois meninos e meninas carregam em si o masculino e o feminino que só se desenvolvem completa e saudavelmente no exercício das trocas. Muito provavelmente esse crescimento não será mérito da escola, mas, certamente, terá ocorrido com sua contribuição.

Revista Profissão Mestre. n. 52, janeiro, 2004, p.12-14.
 
MARCOS MEIER é mestre em Educação, psicólogo, escritor e palestrante. Seus textos encontram-se no site www.marcosmeier.com.br e seus livros no www.kapok.com.br.





Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente artigo, professor!